quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Caneta Nanquim

“O que você é enfim?
Onde você tem paixão?
Segue por aí
Eu não sou ninguém demais
E você também não é
É só rodopiar
Em busca do que é belo e vulgar


Hoje o dia era isso. Eu tinha gasto alguns centavos tentando me fazer feliz e alguma coisa estava sobrando no meio desse espaço. Acompanhei o resto do quadrinho andando pela cidade, até tinha tropeçado umas duas outras vezes de tão incessavelmente interessante que estava. Prestei atenção em todos os detalhes, como se cada quadro soubesse mais sobre mim, e como se saber o tipo de enquadramento me ajudasse em alguma coisa. Provavelmente, eu estava sentindo inveja, porque todo mundo tinha o seu próprio jeito de desenhar, menos eu. Eu desenhava mangá, e um mangá bem dos ruins, daqueles que se parecem com um muitos outros.
Voltando pra casa eu percebi que errei nos seus olhos, na disposição do rosto, na posição daquele desenho que eu fiz de você e que agora era seu. Não dava pra consertar. Era um saco pensar que tudo estava de caneta nanquim e que mesmo que eu tentasse corrigir, o trabalho seria atrapalhado. Eu corria o risco de perder o desenho inteiro, esses pequenos rabiscos tinham um grande significado pra mim.
Decidi que faria da minha vida com você algo parecido com caneta nanquim no papel, que quando a gente erra é bem difícil de concertar o erro – quase impossível. É difícil de fazer de novo, de fazer ser bonito como era antes, de ter o mesmo encanto. É preciso jogar a folha toda fora, e recomeçar o trabalho delicadamente, tomando cuidando pra não esbarrar a mão na parte da tinta que ainda não tinha secado e borrar tudo. Minha vida com você seria isso. Seria como um desenho feito direto a caneta nanquim, e eu me cobraria pra não manchar as partes que estavam boas, e bem desenhadas, do jeito que queríamos.
Só que no meio daqueles livros, daquela gente, e do seu sorriso, era complicado demais disfarçar as vezes que eu tentava ficar mais perto de você. Você virava, e eu logo desviava o olhar pra você não perceber que eu estava morrendo de vontade. Os meus mangás preferidos atrás de mim, mais a esquerda, você a direita, uma porção de textos atrasados, sem nexo, na minha frente. Mesmo assim, toda a vez que eu fechava os olhos mentalmente, eu não conseguia ver muita coisa. Éramos só eu e você, e todas as outras coisas que nós gostávamos, que tínhamos desenhado nessa folha em branco – com caneta nanquim – e já estava seco. Pode ser que, pra mim, fosse mais difícil de compreender qual o motivo pelo qual eu me encantava tanto com você mesmo depois de tanto tempo. E tinha passado muito tempo depois daquela vez que a gente nem sabia como dar as mãos direito, onde colocar o resto do corpo...
Sim, desse jeito tudo era mais difícil, e ainda parecia difícil não sentir ciúmes dos seus olhos em qualquer outro lugar que se não olhando pra mim. Você mal sabia que eu conhecia todo o seu corpo nos meus sonhos, e que de noite, você me dava boa noite antes de dormir. Eu procurava esquecer os obstáculos que tínhamos pela frente, como se daqui há alguns quadros o nosso livro fosse chegar ao fim, mas sempre houvesse uma continuidade. Eu também tinha feito propaganda sua para os meus melhores amigos. Eles te olhavam com desconfiança, eu ria. Eles mal sabiam o que se escondia por de trás dos seus olhos, dos seus cabelos, das suas mãos, do seu corpo, das suas pernas. Ainda estou me perdendo nisso tudo, mas percebo que consigo me encontrar mais facilmente do que muita gente por ai. Isso me faz bem.
Isso me faz tão bem quanto pensar em você no meio da noite, e aí, você sabia o que acontecia comigo como dizia o que eu pensava sem eu ter que dizer nada. Depois disso, eu chorava, eu me culpava. Mas quando você voltava, eu nem me lembrava das vezes que eu chorei tanto por alguém que havia me trocado, me magoado, mentido pra mim. Eu só queria estar com você, e eu estava. Inteiramente. Inteiramente mergulhada na sua energia que passava pro meu corpo, os nossos chakras se alinhavam de um jeito que eu não saberia como expor em palavras – tudo poderia não ser tão sensacional pra você quanto era mim, e essa era a primeira que eu não me importava em assustar alguém com o precipício que eu formava na minha alma. É isso. Eu tinha aprendido a não gostar de gente que ficava em cima do muro depois desse ultimo tombo. Ou vem, e me pega. Ou vai embora, e me larga.
Você tinha decido ficar e fazer diferente. Ou talvez fosse o quadrinho e meu mangá preferido que tivessem mexido com a minha cabeça e eu nem tinha percebido. Sim, com muitos “E”s, porque você estava sendo mais adicional que uma oração aditiva na minha vida. Mais adicional, mais encantadora que todas aquelas aulas que eu passava o dia assistindo, ou que eu mesma dava...
Você decidiu ficar e fazer diferente. E eu nem aceitava mais você colocar a culpa nos seus anos, eu não me importo quantas primaveras você tenha a mais que eu. Porque quando você me abraçava, eu sentia que de alguma forma, você voltava criança. E eu também voltava a ser uma criança indefesa e inofensiva, apenas esperando o seu toque. Meu corpo estremecia, a minha cabeça dava voltas – não era culpa do álcool – e seu cheiro se espalhava pelo ambiente me fazendo querer mais mais mais mais mais mais. Me fazendo querer te colocar em cima daquela mesa de bar, arranhar suas costas, te deixar marcas onde você pudesse se lembrar de mim pra ter certeza que você se lembraria muitas vezes ao dia e não só quando estivesse trabalhando, afinal, eu tinha te confessado que meu mangá preferido estava lá. Depois disso, eu duvido muito que você olhe praquela estante da mesma forma.



Bruna Ferrari

Nenhum comentário:

Postar um comentário