“O que você é enfim?
Onde você tem paixão?
Segue por aí
Eu não sou ninguém demais
E você também não é
É só rodopiar
Em busca do que é belo e vulgar”
Hoje o dia era isso. Eu tinha gasto alguns centavos
tentando me fazer feliz e alguma coisa estava sobrando no meio desse espaço.
Acompanhei o resto do quadrinho andando pela cidade, até tinha tropeçado umas
duas outras vezes de tão incessavelmente interessante que estava. Prestei
atenção em todos os detalhes, como se cada quadro soubesse mais sobre mim, e
como se saber o tipo de enquadramento me ajudasse em alguma coisa.
Provavelmente, eu estava sentindo inveja, porque todo mundo tinha o seu próprio
jeito de desenhar, menos eu. Eu desenhava mangá, e um mangá bem dos ruins,
daqueles que se parecem com um muitos outros.
Voltando pra casa eu percebi que errei nos seus olhos, na
disposição do rosto, na posição daquele desenho que eu fiz de você e que agora
era seu. Não dava pra consertar. Era um saco pensar que tudo estava de caneta nanquim
e que mesmo que eu tentasse corrigir, o trabalho seria atrapalhado. Eu corria o
risco de perder o desenho inteiro, esses pequenos rabiscos tinham um grande
significado pra mim.
Decidi que faria da minha vida com você algo parecido
com caneta nanquim no papel, que quando a gente erra é bem difícil de concertar
o erro – quase impossível. É difícil de fazer de novo, de fazer ser bonito como
era antes, de ter o mesmo encanto. É preciso jogar a folha toda fora, e
recomeçar o trabalho delicadamente, tomando cuidando pra não esbarrar a mão na
parte da tinta que ainda não tinha secado e borrar tudo. Minha vida com você seria
isso. Seria como um desenho feito direto a caneta nanquim, e eu me cobraria pra
não manchar as partes que estavam boas, e bem desenhadas, do jeito que queríamos.
Só que no meio daqueles livros, daquela gente, e do seu
sorriso, era complicado demais disfarçar as vezes que eu tentava ficar mais
perto de você. Você virava, e eu logo desviava o olhar pra você não perceber
que eu estava morrendo de vontade. Os meus mangás preferidos atrás de mim, mais
a esquerda, você a direita, uma porção de textos atrasados, sem nexo, na minha
frente. Mesmo assim, toda a vez que eu fechava os olhos mentalmente, eu não
conseguia ver muita coisa. Éramos só eu e você, e todas as outras coisas que
nós gostávamos, que tínhamos desenhado nessa folha em branco – com caneta nanquim
– e já estava seco. Pode ser que, pra mim, fosse mais difícil de compreender
qual o motivo pelo qual eu me encantava tanto com você mesmo depois de tanto
tempo. E tinha passado muito tempo depois daquela vez que a gente nem sabia
como dar as mãos direito, onde colocar o resto do corpo...
Sim, desse jeito tudo era mais difícil, e ainda parecia
difícil não sentir ciúmes dos seus olhos em qualquer outro lugar que se não
olhando pra mim. Você mal sabia que eu conhecia todo o seu corpo nos meus
sonhos, e que de noite, você me dava boa noite antes de dormir. Eu procurava
esquecer os obstáculos que tínhamos pela frente, como se daqui há alguns
quadros o nosso livro fosse chegar ao fim, mas sempre houvesse uma
continuidade. Eu também tinha feito propaganda sua para os meus melhores
amigos. Eles te olhavam com desconfiança, eu ria. Eles mal sabiam o que se
escondia por de trás dos seus olhos, dos seus cabelos, das suas mãos, do seu
corpo, das suas pernas. Ainda estou me perdendo nisso tudo, mas percebo que
consigo me encontrar mais facilmente do que muita gente por ai. Isso me faz
bem.
Isso me faz tão bem quanto pensar em você no meio da
noite, e aí, você sabia o que acontecia comigo como dizia o que eu pensava sem
eu ter que dizer nada. Depois disso, eu chorava, eu me culpava. Mas quando você
voltava, eu nem me lembrava das vezes que eu chorei tanto por alguém que havia
me trocado, me magoado, mentido pra mim. Eu só queria estar com você, e eu
estava. Inteiramente. Inteiramente mergulhada na sua energia que passava pro
meu corpo, os nossos chakras se alinhavam de um jeito que eu não saberia como
expor em palavras – tudo poderia não ser tão sensacional pra você quanto era
mim, e essa era a primeira que eu não me importava em assustar alguém com o precipício
que eu formava na minha alma. É isso. Eu tinha aprendido a não gostar de gente
que ficava em cima do muro depois desse ultimo tombo. Ou vem, e me pega. Ou vai
embora, e me larga.
Você tinha decido ficar e fazer diferente. Ou talvez
fosse o quadrinho e meu mangá preferido que tivessem mexido com a minha cabeça
e eu nem tinha percebido. Sim, com muitos “E”s, porque você estava sendo mais
adicional que uma oração aditiva na minha vida. Mais adicional, mais
encantadora que todas aquelas aulas que eu passava o dia assistindo, ou que eu
mesma dava...
Você decidiu ficar e fazer diferente. E eu nem aceitava
mais você colocar a culpa nos seus anos, eu não me importo quantas primaveras você
tenha a mais que eu. Porque quando você me abraçava, eu sentia que de alguma
forma, você voltava criança. E eu também voltava a ser uma criança indefesa e inofensiva,
apenas esperando o seu toque. Meu corpo estremecia, a minha cabeça dava voltas –
não era culpa do álcool – e seu cheiro se espalhava pelo ambiente me fazendo
querer mais mais mais mais mais mais. Me fazendo querer te colocar em cima
daquela mesa de bar, arranhar suas costas, te deixar marcas onde você pudesse se
lembrar de mim pra ter certeza que você se lembraria muitas vezes ao dia e não
só quando estivesse trabalhando, afinal, eu tinha te confessado que meu mangá
preferido estava lá. Depois disso, eu duvido muito que você olhe praquela
estante da mesma forma.
Bruna Ferrari