quarta-feira, 9 de março de 2016

Chora, moça

"How many times do I have to tell you
Even when you’re crying you’re beautiful too
The world is beating you down, I’m around through every mood
You’re my downfall, you’re my muse
My worst distraction, my rhythm and blues
I can’t stop singing, it’s ringing, in my head for you"


Calma, moça. Sei que teus dedos tremem e que as teclas parecem pequenas, mas toda essa mare de sentimentos vai passar. Cada nota vai ter seu tempo certo, e você não vai mais esbarrar nos sustenidos. Sei que é difícil acreditar no que eu to dizendo agora, eu garanto que as coisas possuem um lugar pra estar e teu lugar é ai. Não sai daí, é aí que é teu lugar, e você sabe disso. Não abandona o que lutou por pouca coisa e não desiste agora.
Tenta não desistir, a curva de aprendizado tá crescendo e tá funcionando. Desperdiça mais horas praticando, erra mais, tenta mais, se decepciona. Desse jeito você nunca vai levantar a cabeça e as chances não estão espalhadas pelo chão. Olha pro teu trabalho, quem é que nunca quis ter as facilidades que você tem? Porque tudo teu é um problema, um defeito? Porque tu se incomoda com o moço olhando do outro lado da rua e sabendo que tens um namorado? Tá difícil, eu sei. Mas esquece esse gente, percebe que ninguém te adiciona nada.
Parece que as coisas não se encaixam, mas na verdade, você tá quase completa. Segura a onda, respira... expira. Volta pro piano, Ana. Esbarra nos sustenidos, bota força nas teclas, chora tudo o que você tem. Chora Mozart pelos dedos, chora. Chorar faz bem, ainda mais quando fica assim... tão lindo...

segunda-feira, 7 de março de 2016

O Som do Piano

"I'd take another chance, take a fall, take a shot for you
I need you like a heart needs a beat,but it's nothing new
I loved you with a fire red now it's turning blue"



Ana acordou mas não conseguia colocar os pés no chão. Estava muito frio, e a sensação térmica era como se pisasse na própria neve. Mesmo assim, encontrou forças por entre os cobertores, só não encontrou a meia do pé direito. Havia alguns dias que sempre amanheciam daquele jeito: chão gelado, amanhã fria, preguiça e muito cobertor. Mas Ana era insistente, ia direto para o piano repassar suas lições. 
O instrumentou passou a ser o único companheiro de uns tempos pra cá. Foi casada, mas a vida estava de mudança. Não achava um peito pra se acanhar sem sentir medo, não achava aquela posição certa pra dormir de conchinha depois de uma noite de sexo. Pareciam que as coisas tinham a mesma forma de antes, e só o piano conseguia modelar seu coração. Apesar de gostar, nunca estudou música formalmente. Ao invés disso, foi estudar arquitetura. Foi recomendação expressa do pai, também arquiteto, que contava histórias sobre os maiores prédios da cidade nos passeios de domingo. 
Ao terminar a faculdade, Ana se sentiu perdida e tudo piorou quando o marido foi embora quase na mesma época. Tinha a sensação de estar baleada no peito, ou ter esquecido um pedaço de si em algum lugar que não pudesse mais achar. O mais engraçado era que não sentia falta do seu homem, sentia falta de si mesma. Teve a melhor festa de formatura do mundo, ganhou um carro que meses depois vendeu para pagar o advogado. Passou um ano desempregada. O pai, orgulhoso do diploma que só servia pra pendurar na parede, insistiu para que ela não desistisse da era. "O mercado é bom!", dizia ele com orgulho. Mas na verdade, o mercado estava péssimo, e cada dia que passava o próprio pai fazia suas rezas antes de dormir para voltar no dia seguinte ainda empregado. 
Uma tia se comoveu com a situação da pobre menina e ofereceu o apartamento na praia por uns tempos. Ana foi sem pensar duas vezes, e foi lá que conheceu o piano pela primeira vez. Lá, também, passeava na praia todas as noites. Nunca teve medo de ser assaltada, nem nada, apesar de já ter perdido o celular, a bolsa, uns tênis de marca.
Num desses passeios encontrou Ricardo, um jovem sucedido, era engenheiro num escritório perto. Ela não entendeu muito bem o que ele fazia, mas parecia que era algo com vistoriar as obras da prefeitura em algum lugar especifico da cidade. A amizade com Ricardo foi ficando cada vez mais forte, chegavam a pegar no sono do lado do celular. A cada bip, aquele frio na barriga subia. E não demorou muito pra juntarem os corpos num beijo. Ana adorou aquela sensação de estar protegida, de se sentir querida, de se sentir alguém de verdade. Naquele momento pensou que poderia até largar o piano, gostaria de ter o coração totalmente modelado pelas mãos de Ricardo. 
A medida que ficavam mais íntimos, a vontade que tinham de estar mais próximos era notável. Ana largou o piano, fez outros planos pra sua carreira, tentaria alguma vaga de arquitetura perto da empresa onde Ricardo trabalhasse. Nem que tivesse que aturar aquilo pelo resto da vida, queria estar perto dele. Ele amou a ideia.  Ao fim de um ano, estavam quase morando juntos. Ele vinha nos fins de semana, dormiam juntos, dividiam espaço de escovas dentes, a toalha dele já ficava na casa dela. Passou a ter uma gaveta no armário. Tudo ia bem. 
A melhor noticia foi quando Ana recebeu um telefonema de uma empresa. Tinham uma vaga disponível. Fez a entrevista e passou sem grandes dificuldades. Aquelas pessoas eram forçadas demais e não exigiu grandes coisas pra continuar na competição. Apesar de estar mais perto de Ricardo, ele não quis morar com ela. Disse que tinha vivido muito tempo naquela configuração e agora era difícil, gostaria só de ir passar uns dias, continuar com os espaços na gaveta e na casa, mas sem grandes responsabilidades. Ana, sempre compreensiva, entendeu e aceitou. Ficaram nesse intercambio de casas por algum tempo, até Ricardo começar a se sentir preso novamente. 
O relacionamento não tinha problemas aos olhos dela, mas ele estava cada vez mais sufocado. Pediu um tempo, uma pausa da vida que tinham pra poder botar a cabeça no lugar. Ana aguardou todo o tempo ansiosamente. No fim desse período, Ricardo veio contando que conhecera uma garota, estavam bem amigos ha algum tempo. Não disse muito, mas não foram necessárias palavras para entender o que estava acontecendo. Ana, novamente, compreendeu e aceitou.
Continuaram por perto, todo esse tempo Ana ia e voltava do trabalho que cada dia odiava mais. A sensação de ter o peito baleado crescia, e o medo aumentava. Num desespero, ligou muitas vezes no celular de Ricardo que caia direto na caixa postal. O dito cujo não tinha mandado nenhuma mensagem desde que voltou de viagem, não tinha atendido nem um telefonema. Sem muito pensar, foi direto pra casa, mas no caminho, trombou com Ricardo. Estava acompanhada da moça que apresentou-se formalmente, Ana manteve a compostura, porque se sentia, além de desgraçada, uma dama. Procurou não dar muito espaço pra conversa, o que teria pra conversar com a amiga tão próxima? Nada. 
Ricardo se despediu com um beijo no rosto bem gelado, virou as costas e de relance, Ana pode ver a mão dele pegando a dela. Procurou não olhar pra trás, e logo, saiu correndo pela cidade. Voltou pra casa, a antiga casa da tia, e lá estava. Lá estava o velho piano companheiro de sempre. 
Ana compôs sua primeira musica, e as feridas no peito foram se fechando. Talvez tivesse encontrado alguma coisa que, finalmente, a preencheu por completo... Era o som do piano.