segunda-feira, 17 de julho de 2017

Tudo sobre Kevin


"And it's just as good as I knew it would be"
trilha sonora oficial


Conheci Kevin quando tinha mais ou menos quatro anos e percebi que brincar de carrinho me apetecia mais. Naquele natal, eu tinha ganhado uma linda cozinha. Era rosa, com forninho decorado - acompanhava até uma pizza dentro, também havia talheres na mesma cor. Meu irmão ganhou um carrinho de controle de remoto, e apesar de achar que minha cozinha era maior e melhor, eu achei o carrinho bem mais legal. Acho que foi aqui que Kevin e eu nos conhecemos.
Kevin me acompanhou por grande parte da minha infancia. Nas minhas histórias, era ele quem salvava a donzela, namorava a melhor menina da cidade, praticava esportes radicais, era bonito e forte. Ele era e sempre foi o meu sonho de homem. Muitas vezes conversavamos antes do banho, mas os dialogos mais divertidos surgiam depois, ou durante, que era quando eu tinha espuma o suficiente no cabelo para fazer o moicano e barba iguais aos dele. 
Riamos de monte. Ele era meu companheiro e grande parte de mim, que aos poucos ia crescendo a medida que minhas roupas ficavam mais apertadas e minhas curvas mais acentuadas. Certa vez minha mãe nos levou para comprar meu primeiro sutiã, ainda hoje me lembro que ele era rosa com corações, e eu odiei a sensação de ter aquilo por debaixo da roupa. Era um crime contra a nossa amizade. Como eu poderia voltar para casa com aquilo e contar tudo para o Kevin? Ele ficaria chateado, certamente. Mas eu fui forte e contei:
- Olha, Kevin. Não podemos ser mais amigos. Meu pai já disse que estou ficando mocinha e fica feio continuar a brincar com os meninos. Ele até me disse que vai chegar uma hora em que eles vão ficar me olhando e tentando passar a mão em mim.
- Não há nada que podemos fazer. Nós somos assim, pq voce vai se afastar de mim por causa disso? Eu não acho justo. Você vai sentir minha falta. - ele respondeu, indignado.
- Sinto muito, Kevin. As coisas não podem mais ser assim. Eu sou uma menina, preciso me colocar no lugar de menina.
Essa conversa foi tão dolorosa para mim, e eu fiquei triste durante semanas. Obviamente, meus pais nunca souberam o porquê. "Coisa de criança, Roberta" as minhas vizinhas diziam. "Uma hora ela muda" e minha mãe se agarrou a essa ideia até então. 
Como toda a separação, eu cheguei a superar o Kevin. Tenho certeza de que por dois ou três anos eu o esqueci quase completamente. Não me lembrava muito bem de como fazer o moicano, ou do corte que sua barba teria, então comecei a reproduzi-lo onde pude. 
- Fê, por que tu não faz um moicano?
- Acho que eu ficaria ridiculo - e riu.
Meu irmão acabou fazendo o moicano, e eu acabei cuidando do cabelo dele todas as vezes que saíamos. Ele era um tantinho do Kevin que eu queria de volta, mas muitos outros Kevins estavam por vir. O meu Kevin mais duradouro foi meu unico ex namorado, com certeza. Ele tinha traços marcantes, peito largo, mãos grandes. Era ele, também, parte do meu antigo amigo. Éramos adolescentes quando começamos a namorar, mas os pelos já lhe surgiam na cara, e a contra gosto, ele deixava. 
Apesar dos traços fisicos semelhantes que meus Kevins tinham com aquele velho amigo da minha infancia, nada daquilo supria a existencia do segundo. Eu queria meu Kevin de volta, mas não o queria por perto. Ao decorrer do meu relacionamento, tentei desesperadamente qualquer coisa para não despejar toda a raiva nos detalhes da existencia de Kevin em todos os inocentes a minha a volta. E eu não pude me segurar. 
- Vai viver tua vida, Kevin. Some. Eu não te aguento mais, tu me deixa em duvida, eu não consigo ficar sossegada. 
- Vamos dar um jeito. Você fica sozinha em casa e já sabe como me procurar.
Sozinha, em casa, eu vestia algumas peças de roupas que me eram proibidas. As gravatas ficavam lindas, as camisas extremamente atraentes. E a sensação de Kevin e eu nos aproximando outra vez era um deleite. 
Começamos a conviver em segredo. Um cantinho ali e outro aqui, e tantas eram as mentiras que eu inventava para viver nossas aventuras outras vez - nesta época, eu fui Ricardo, Henrique, Thomas, Lucas, Felipe, Luiz, Roger. Mas nunca tinha sido Kevin, então não sabia exatamente o que eu estava fazendo com aquilo. Tentei conversar com algumas pessoas, explicar que eu não era uma pessoa ruim, eu só estava mal e fazendo escolhas erradas. Eu fiz muitas escolhas erradas como Ricardo, Henrique, Thomas, Lucas, Felipe, Luiz, Roger. Eu machuquei o coração de todas as namoradas de Kevin com eles todos. Eu não surportava a ideia de outra menina perto dele.
- Não se preocupa, ninguém me conhece - ele tentava me acalmar enquanto eu surtava
- Tu não entende, cara. Tu não me deixa em paz, tu não sai da minha cabeça. 
E eu esqueci Kevin por mais quatro anos. Um bocado de tempo pra quem tinha uma relação complicada e delicada como a nossa. 
Ao longo desse tempo, eu construi meu imperio dentro do meu coração. Nele, havia grandes paredes, as muralhas espalhavam-se por toda a fronteira, e eu impedi a todo o custo que outros Kevins pudessem entrar na minha vida. Um tentou, bravo cavalheiro, mas não passou do labirinto até a porta de entrada, e todos os outros só serviam de comida aos peixes que habitavam o lago em volta do meu castelo. As meninas passavam, sem grande dificuldade, porque os dragoes são encantados pela beleza feminina. E Kevin, bom... Kevin é um homem. Isso não seria permitido dentro enquanto eu reinasse. 
Até que um dia a mais bela das donzelas veio até o reino do meu coraçao. Ela enfrentou todas as fortes defesas e seus ataques eram muito poderosos. Meu imperio desabou. Cheguei a pensar que Kevin havia tramado contra mim e estivesse ao lado dela. "Que traidor", eu pensei. Eu nunca falei dele para ninguém e como é que alguém sabia exatamente a que ponto chegar? 
- Kevin, acorda. Eu preciso da sua ajuda. Preciso saber de uma coisa. 
- Calma, o que voce quer, mulher? - a voz de sono e cansaço dele era aparente.
- Eu conheci uma garota, Kevin. Ela é linda. Eu não sei o que fazer.
- Faça como todas as outras, por que precisa da minha ajuda agora? Pensei que estivessemos distantes um do outro.
- E estamos. Mas estou desesperada, parece que ela sabe de você. Você vai precisar conhece-la. Não vou conseguir te manter preso aqui por muito tempo, talvez ela veio para te resgatar de alguma forma.
- Não se preocupa, vai ficar tudo bem. Eu não a conheço, mas todos já sabem sobre mim dentro de você.
Aos 21, eu nunca mais consegui esquecer Kevin. E fomos ficando cada vez mais proximos em poucos meses. Enquanto eu caminhava pela rua, tinhamos dialogos mais serios. Desta vez, as situações nos permitiam mais que momentos sozinhos em casa, elas nos desafiavam. Os homens tentavam nos abraçar, e muitos deles zombavam da gente, mas dançavamos conforme o ritmo da música. Eu tentei achar outros Kevins, como tinha feito na minha adolescencia, mas aquilo já não era o suficiente. Aos poucos, eu morria, e Kevin, também.
- Eu sinto muito, cara. Eu sou fraca demais. Eu não consigo lidar com o jeito que me sinto perto dela, e a cada dia que passo a perco mais e mais e mais. 
- Não se preocupa, voce precisa me deixar lidar com a situação. Estamos tempo demais juntos, precisamos estar mais. Eu vou estar do seu lado. Voce não vai ter duvidas. 
Acordei de manhã decidida. Tirei o peso dos cachos dos meus ombros, e com eles, o peso do mundo também. Corri pra casa contente. Procurei Kevin pelos cantos, pelas roupas, pelas cores, pelas coisas e ele estava em todos os lugares, mas mesmo assim não conseguia ve-lo. 
- Kevin? Kevin? Não some agora, cara. 
Entrei no banheiro já decepcionada. Eu não acreditava que meu cavalheiro de tantos anos tinha me deixado assim, mas foi então, que eu olhei no espelho e lá estava ele. Dessa vez, sem barba e sem moicano, numa versão 2.0 ainda melhor. Era ele, sorri aliviada e orgulhosa de nós.


Prazer, meu nome é Kevin. Eu tenho 21 anos. Dentre os meus talentos, os que gosto mais são desenhar e dissimular. Sou louco girafas e gatos. Nas horas vagas, me imagino dentro de um anime, com as roupas do meu personagem preferido, ou viajo pelo Google maps em outro país. Tento não sair de casa, pois sou timido, mas reparo que as pessoas me olham muito. Odeio couve-flor e cerveja preta, a existencia dessas coisas foram os dois maiores pecados da humanidade contra o mundo. Minha cor preferida é vermelho, e eu amo o a penumbra. E o resto, não vais descobrir lendo..

2 comentários:

  1. Isso significa que você é um homem trans? Demaais, como foi aceitacao da sua familia?

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    1. Sim! Eu sou um homem trans. Minha família ainda não sabe, mas meus amigos e minha namorada aceitaram muito bem...!

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